Milícias e grupos paramilitares armados pela Indonésia.

Resumo:
Desde Novembro de 1998 milhares de pessoas fogem das suas aldeias e procuram protecção nas igrejas ou nas cidades mais importantes. A violência, primeiro atribuída às forças militares regulares, é desde Janeiro essencialmente causada por milícias e bandos paramilitares que se diz armados pelo exército indonésio. Esta atitude contradiz as declarações do presidente Habibie que, depois de 23 anos de ocupação militar, acaba de declarar que a melhor solução para Timor Leste seria a independência.
As autoridades militares negam e admitem, ao mesmo tempo, que estão a armar civis. De todas as declarações e testemunhos recolhidos sobressai uma ideia clara: uma catástrofe humanitária pode estar iminente se o exército não retirar rapidamente as armas que distribuiu.
A presença duma força internacional ao serviço da ONU é indispensável e urgente para restabelecer a segurança e desarmar as milícias. A retirada completa das Forças Armadas da Indonésia poderia processar-se simultaneamente com o desarmamento da resistência armada timorense (Falintil), desde que isso fosse feito sob a responsabilidade da ONU, no quadro duma solução que respeite o direito do povo de Timor Leste à autodeterminação.

Contexto:
1. O Governo de Jacarta, que negoceia desde Agosto de 1998, sob os auspícios do Secretário Geral da ONU, um estatuto de autonomia de Timor Leste na Indonésia, acabou de declarar que - se os timorenses não aceitarem essa autonomia - a antiga colónia portuguesa poderia aceder à independência. O presidente Habibie considera mesmo que isto seria a melhor solução.
2. Todavia, promessas feitas desde Junho de 1998 sobre a redução das tropas indonésias em Timor Leste nunca foram traduzidas em actos, antes pelo contrário (ver "Retirada das tropas indonésias; necessidade de observadores das Nações Unidas" e "Efectivos e composição das Forças Armadas indonésias em Timor Leste", Observatório Timor Leste, FA01-1998/11/16 e FA03-1999/02/09).
3. A situação em Timor Leste é, segundo o conjunto das informações disponíveis, uma mistura contraditória de maior liberdade política e de mais violenta repressão militar. Das informações sobre massacres na região de Alas em Novembro-Dezembro de 1998, atribuídos às forças militares regulares (ver "Alas não é excepção!", Observatório Timor Leste, FA02-1998/12/11), passou-se a uma situação de violência causada por milícias ou civis armados.
4. As forças armadas indonésias sempre utilizaram milícias, mas sob este designação colocam-se realidades diferentes que é necessário distinguir:
a) forças militarizadas que, sem fazer parte da estrutura das Forças Armadas (ABRI) no sentido restrito do termo (têm contratos temporários, são pior remuneradas e pior equipadas), têm um enquadramento legal. É o que nalguns países e situações coloniais se chamou "forças auxiliares".
b) grupos de civis armados, mais ou menos apadrinhados pelas forças armadas regulares, e agindo mais ou menos independentemente dessas forças regulares: os "paramilitares" ou "milícias".
· Em Timor Leste entram na primeira categoria as auto-defesas ou guardas de segurança chamados "wanra" e, na segunda categoria, os grupos como Mahidin, Gadapaksi, etc.
c) Além desses, os militares indonésios criaram, em cada um dos 13 distritos, grupos paramilitares aos quais dão o nome de "tim" (Alfa, Saka, Makikit, Halilintar, etc.). Estes grupos operam directamente sob as ordens de oficiais indonésios. Utilizados como força de apoio para as operações militares, são responsáveis por um grande número das violações dos direitos humanos. Em documentos militares recentemente desviados e divulgados na Austrália (ver FA03-1999/02/09), foram classificados como "wanra" e "penugasan" (tropas exteriores à província e temporariamente colocadas em Timor Leste).
· As referências a esta realidade complexa são confusas, mesmo nas declarações dos responsáveis militares que se seguem.

Os factos:
(As declarações seguintes foram retiradas de comunicados das Agências noticiosas ou de jornais)

GENERAL WIRANTO, chefe do Estado Maior das F.A. indonésias e Ministro da Defesa:
· "Não temos dado armas às pessoas. De facto, as organizações que foram ajudadas no passado pelas F.A. para manter a paz foram abolidas e as suas armas confiscadas". Mas unidades paramilitares locais que ajudam as ABRI a manter a paz foram armadas: "Estas unidades existem há muito tempo para ajudar os comandos militares de distrito a manter a segurança, não exercem pressão sobre os grupos pró ou anti-integração" (Reuters, Jacarta, 2-2-99).
· "As ABRI nunca deram armas aos civis mas dissolveram grupos de milicianos locais como os Saka e Makiki". Estas milícias foram formadas nos comandos de distritos militares e ajudam à segurança. Foram formadas legalmente e são armadas com velhos modelos de espingardas. "Não é por razões políticas e não é para exercer pressão sobre as pessoas. Mas unicamente para ajudar as ABRI a fazer face aos grupos perturbadores da segurança (GPK)" (Antara, 2-2-99). [GPK é o nome habitualmente dado pelas autoridades à resistência armada timorense].

GENERAL SUBAGYO
· A principal tarefa das milícias chamadas "wanra" é de "manter a paz e a ordem". As milícias "têm ajudado as F.A. a tomar conta dos grupos que causam problemas". Os ‘wanra’ são armados pelo exército indonésio e supervisionados pelo comando de distrito em Dili. Questionado sobre a estratégia de criar grupos armados e se isso pode levar à guerra civil em Timor Leste, Subagyo respondeu que as F.A. "controlam a situação e podem mais tarde decidir se continuam a distribuir armas ou se desarmam as milícias" (Lusa, Sidney, 1-2-99).

GENERAL SUDJARAT porta-voz das F.A. em Jacarta.
· (confirma a entrega de armas aos civis; os militares controlam as armas e vão recuperá-las "após terem terminado a sua tarefa"). (ver entrevista em anexo: BBC, Londres, 5-2-99)

MAJOR GENERAL SYAMSUL MA’ARIF, chefe do centro de informação da Defesa.
· As ABRI têm dado armas a civis "mas somente com caracter temporário", o que visava levar os civis a proteger-se a si próprios dos grupos perturbadores (Jakarta Post, 2-2-99).

MAJOR GENERAL ADAM DAMIRI, chefe do comando militar regional em Bali.
· Damiri disse que o objectivo era de armar recrutas civis escolhidos para as áreas que foram frequentemente atacadas pelos rebeldes, segundo a Antara. Ele negou as alegações de que as armas eram entregues para impor a integração. No Sábado, disse, as F.A. recrutaram 1.000 homens com idades compreendidas entre 17 e 35 anos, no conturbado território (AP, Jacarta, 7-2-99).

TENENTE CORONEL SUHARTONO SURATMAN, comandante militar de Timor Leste
· 250 dos 1.000 membros previstos para uma força paramilitar -Kamra- foram recrutados em Timor Leste. Os recrutas vêm dos 13 distritos e têm a instrução primária. Serão colocados em todas as áreas da província para manter a ordem... Os recrutas vão ser colocados com a polícia nas aldeias isoladas consideradas com riscos para a segurança. O pessoal paramilitar será armado com bastões, não com armas de fogo.
Quanto aos jovens recrutados e armados com armas de fogo para ajudar as forças armadas desde que Timor Leste foi anexado, Suratman disse que alguns deles foram retirados e alguns ainda se encontram ao serviço e vão ser desactivados quando a situação em Timor Leste estiver estabilizada. Estes grupos de jovens armados (pró- integração) têm nomes como Malinkundang, Gadapaksi, Halilintar e Makikit (Kompas, 26-1-99).
· declarou ter planos para armar civis nas 440 aldeias [‘sucos’] de Timor Leste: "quero equipar estes voluntários com armas para proteger as aldeias contra os ataques dos rebeldes", mas não quis especificar com que tipo de armas (AP, Dili, 5-12-98).
· 5 a 10 pessoas nas pequenas aldeias rurais vão ser armadas com bastões e fundas e treinados por forças militares regulares indonésias para lutar contra as forças pró-independência, Fretilin, disse. "Se eles usarem outras armas (como facas e armas de fogo) isso será por sua própria iniciativa", e insistiu que os militares não lhes dariam armas de fogo (Sidney Morning Herald, 8-12-98).

· 1.000 membros da nova milícia em Timor Leste começaram na Segunda-feira duas semanas de treino dado por militares indonésios, quando a tensão entre apoiantes e opositores da independência está a aumentar. O coronel Suratman foi citado pelo Jakarta Post como dizendo que os ‘wanra’ iam começar a treinar... disse que os recrutas iam ter um contrato de um ano e o salário mensal de 200.000 rupias (24 US$ / 21 euros). "Não é verdade que a milícia seja formada para lutar contra os grupos anti-integração. Vamos armá-los com bastões para ajudar a manter Timor Leste seguro, não para combater" (AFP, Jacarta, 8-2-99).

TENENTE CORONEL SUPADI, segundo-comandante militar de Timor Leste.
· Interrogado sobre as mortes de civis perto de Suai, negou que as ABRI estivessem envolvidas na disputa em Suai, mas admitiu que as ABRI tenham dado armas à milícia, em número de cerca de 1.200, dizendo que eram espingardas capturadas à resistência armada Fretilin e também espingardas SP1 e SP2 que eram, até recentemente, usadas pelos militares indonésios.
"Se não lhes damos armas, haverá mais mortes do nosso lado" disse Supadi por telefone à AAP a partir de Dili. "É melhor que as vitimas estejam do lado deles", "Os conflitos entre eles (pró e anti-integração) vão continuar até que o problema de Timor Leste seja resolvido". O coronel Supadi admitiu que as duas semanas de treino dadas às milícias eram inadequadas: "eles estão apressados porque são emocionais" disse o coronel, que negou todavia que as ABRI estivessem a provocar a guerra civil (AAP, Jacarta, 27-1-99).
· Após décadas de combates, muitos timorenses têm vontade de vingar as perdas de familiares, disse Supadi. "Xanana, se for libertado, logo que chegar a Dili, pode ser morto. Há pessoas cujos familiares foram mortos por causa de Xanana. Há muitas pessoas que têm desejos de vingança contra Xanana". Mas Supadi admitiu que os militares estão a recrutar e armar milícias para apoiar a integração (Asia Pulse, 1-2-99).

CÂNCIO LOPES, chefe do grupo paramilitar MAHIDIN ("morto ou vivo com a Indonésia")
· (Falando em Bahasa indonésio) "Recebemos 20 Sks [espingardas de origem chinesa?] dos militares locais [Ainaro]. Foi em 30 de Dezembro. Lembro-me porque foi no dia 17 deste mês que Mahidin foi constituído. Usamos as SKs e três M-16 para o ataque". [Johnathan Head que recolheu este depoimento assinala que seis pessoas foram mortas neste ataque perto de Zumalai, no distrito de Suai, incluindo um aluno da escola de 15 anos e uma mulher grávida] (BBC 5-2-99).

SOENARKO, chefe dos ‘Badan Administrasi Kepegawaian Negara - BAKN’ (serviços de emprego).
· "É razoável assumir que os naturais (timorenses) são 80 % do total dos funcionários públicos em Timor Leste, isto é, 56.000 pessoas. Se acrescentarmos a estes 56.000 funcionários os 20.000 civis recrutados pela polícia e os militares para ajudar como guardas de segurança (as ‘milícias’), o número de timorenses que trabalham para o Governo indonésio é de 76.000 pessoas" (Suara Pembaruan, 5-2-99).



Outras fontes
· Clementino Amaral, responsável em Dili da delegação da Comissão de Direitos Humanos formada pelo Governo indonésio, disse que "os militares dão armas aos que defendem a posição da Indonésia para que possam matar os partidários da independência, que não têm armas" (Sidney Morning Herald, 28-1-99).
· O padre Hilário Madeira, de Suai, disse à rádio ABC (Austrália) que os militares e as milícias estavam envolvidos nos massacres: "os militares e elas (as milícias) juntos, não somente elas (as milícias)" (citado por AAP, Camberra, 29-1-99).
· O bispo Belo disse que se tinha queixado a oficiais militares superiores dos problemas actuais, incluindo osconfrontos armados entre civis. Mas os oficiais militares em Dili disseram-lhe que não havia problemas: "A situação está sob controlo aqui", disse um oficial militar. "Não ouvi nenhum relatório de confrontos envolvendo civis. Não acredite em rumores" (Indonesian Observer, 28-1-99).
· O bispo Belo disse: "Nunca tivemos isso das pessoas da guerrilha. Eles (os paramilitares) entraram na aldeia e o resultado foram seis mil pessoas que procuram refúgio perto da paróquia. Isto nunca tinha acontecido antes. Só agora, só agora pela primeira vez. 6.132 pessoas de Zumalai abandonaram a sua aldeia e procuraram refúgio junto da paróquia". (BBC, 5-2-99).

· Xanana Gusmão, presidente do Conselho Nacional da Resistência Timorense, respondeu às perguntas duma rádio portuguesa (RDP, 12-2-99):
P. Aceita o desarmamento simultâneo das milícias pró-indonésias e da guerrilha pró-independência?
R. Não lhes chamo milícias pró-indonésias. Para mim as milícias pró-indonésias não são as forças que nos últimos 23 anos lutaram contra as Falintil . As milícias pró-indonésias são simplesmente o que vocês chamam esquadrões da morte, que intimidam, semeiam o terror e matam a população. Sobre isto não aceito compromissos. Devem ser desarmados imediatamente.
P. E os querrilheiros pró-independência, numa fase seguinte?
R. Aceito que nas negociações para um cessar-fogo possam participar os paramilitares que foram utilizados pelas forças ocupantes para fazer a guerra contra as Falintil. Aceitamos que os paramilitares e os soldados indonésios, os batalhões que normalmente chamamos ABRI, possam negociar com as Falintil. Masquanto às milícias pedimos o seu desarmamento imediato e total.

Conclusões:
1. Timor Leste vive num clima de profundas mudanças políticas, autorizadas pelo Governo indonésio depois da queda de Suharto. Mas ao mesmo tempo assiste-se a um aumento dos efectivos militares e das violações dos direitos humanos.
2. As declarações dos responsáveis militares são suficientemente contraditórias para mostrar que alguns deles querem esconder o que outros revelam.
3. As contradições sobre os fins perseguidos deixam poucas dúvidas: basta lembrar que estão em Timor Leste 18.000 militares regulares (1 para 40 habitantes) para ver que não há necessidade de distribuir armas aos civis.
4. A insistência sobre o recrutamento de 1.000 (ou 1.200) "wanra" parece também uma cortina destinada a esconder muitos outros, visto que num único dia terão sido recrutados 1.000 homens e que o recrutamento deveria durar até Março.
5. Notar-se-á em particular a afirmação do chefe dos serviços administrativos de emprego que, falando numa perspectiva diferente da dos militares, afirma que já são 20.000 os civis recrutados pelos militares e pela polícia! (Todos os números devem ser lidos à escala de Timor Leste: 800.000 habitantes).
6. A situação actual em Timor Leste poderia ser um sinal de falta de controlo das autoridades indonésias, como, parece-nos, acontece em diversas províncias. Mas as declarações reproduzidas mostram que é uma situação planificada, organizada e justificada até altos níveis das forças armadas indonésias.
7. As vítimas não são unicamente timorenses; 200 transmigrantes indonésios da aldeia de Zumalai refugiaram-se em Suai com os 6.000 timorenses que fugiam à violência.